terça-feira, 20 de março de 2012

A necessidade da Escritura

A necessidade da Escritura pode ser definida do seguinte modo: A necessidade da Escritura significa que a Bíblia é necessária para o conhecimento do evangelho, para a manutenção da vida espiritual e para certo conhecimento da vontade de Deus, mas não é necessária para saber que Deus existe ou para saber algo a respeito do caráter de Deus e das leis morais.
Essa definição pode agora ser explicada em suas várias partes.

1. A Bíblia é necessária para o conhecimento do evangelho.


Em Romanos 10.13,14,17, Paulo diz: “...porque ‘todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo’. Como, pois, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem não ouviram falar? E como ouvirão, se não houver quem pregue? [...] Conseqüentemente, a fé vem por se ouvir a mensagem, e a mensagem é ouvida mediante a palavra de Cristo”.


Essa afirmação indica a seguinte linha de raciocínio: 1) Ela presume que a pessoa deve invocar o nome do Senhor a fim de ser salva. (No uso paulino em geral, assim como no contexto específico [cf.v.9],”Senhor”refere-se ao Senhor Jesus Cristo.) 2)As pessoas só podem invocar o nome de Cristo se crêem nele (isto é, aquele que é o Salvador digno de ser invocado, que responderá aos que o invocam). 3) As pessoas não podem crer em Cristo a menos que tenham ouvido a respeito dele. 4) Elas não podem ouvir de Cristo a menos que haja alguém que lhes fale a respeito de Cristo (um “pregador”). 5) A conclusão é que a fé salvadora vem pelo ouvir — isto é, por ouvir a mensagem do evangelho — e ouvir a mensagem do evangelho vem por meio da pregação de Cristo. A conclusão parece ser que, sem ouvir a pregação do evangelho de Cristo, ninguém pode ser salvo.

Essa passagem é uma das diversas que mostra que a salvação eterna vem somente por meio da fé em Jesus Cristo, e não de Outro modo. Falando de Cristo, João 3.18 diz: “Quem nele crê não e condenado, mas quem não crê já está condenado, por não crer no nome do Filho Unigênito de Deus”. De modo semelhante, em João 14.6, Jesus diz: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim”.’

Mas se as pessoas podem ser salvas somente por meio da fé em Cristo, alguém poderia perguntar como os crentes da antiga aliança podiam ser salvos. A resposta deve ser que os que foram salvos sob a antiga aliança foram salvos por meio da confiança em Cristo, embora sua fé fosse um “olhar adiante” baseado na palavra da promessa de Deus de que o Messias ou o Redentor haveria de vir. Falando dos crentes do AT como Abel, Enoque, Noé, Abraão e Sara, o autor de Hebreus diz: “Todos estes vive ram pela fé, e morreram sem receber o que tinha sido prometido; viram-no de longe...” (Hb 11.13). E Jesus pôde dizer de Abraão: “Abraão, pai de vocês, regozijou-se porque veria o meu dia; ele o viu e alegrou-se” (Jo 8.56). Isso se refere certamente à alegria de Abraão em olhar em direção ao dia do Messias prometido. Assim, mesmo os crentes do AT possuíam fé salvadora em Cristo, para quem eles olharam, não com o conhecimento exato dos detalhes históricos da vida de Cristo, mas com grande fé na absoluta confiabilidade da palavra da promessa de Deus.


A Bíblia é necessária para a salvação, portanto, neste sentido: uma pessoa deve ler a mensagem do evangelho da Bíblia por si própria ou ouvi-la de outra pessoa. Mesmo os crentes que alcançaram a salvação na antiga aliança obtiveram-na quando confiaram nas palavras de Deus que prometiam o Salvador que estava para vir.


Há outras idéias que diferem deste ensino bíblico. O inclusivismo é o pensamento de que as pessoas podem ser salvas pela obra de Cristo sem conhecer nada a respeito dele e sem confiar nele, mas simplesmente por seguirem sinceramente a religião que conhecem. Os inclusivistas freqüentemente falam a respeito de “muitos caminhos diferentes para Deus” mesmo que enfatizem que eles pessoalmente crêem em Cristo. O universalismo é o pensamento de que todas as pessoas, em última instância, serão salvas. O pensamento sustentado neste capítulo de que as pessoas não podem ser salvas sem conhecer a respeito de Cristo e da confiança nele é por vezes chamado exclusivismo (embora a palavra em si mesma não seja feliz, por sugerir um desejo excluir outros e, desse modo, falhe em transmitir o tema do alcance missionário, tão forte no NT).


2. A Bíblia é necessária para a manutenção da vida espiritual.


Jesus diz em Mateus 4.4 (citando Dt 8.3) que “nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus”. Aqui Jesus indica que nossa vida espiritual é mantida pela nutrição diária com a Palavra de Deus, exatamente como nossa vida física é mantida pela nutrição diária com comida física. Negligenciar a leitura regular da Palavra de Deus é prejudicial para a saúde de nossa alma, como negligenciar a comida física é prejudicial para a saúde de nosso corpo.


3. A Bíblia é necessária para o conhecimento seguro da vontade de Deus.


Será argumentado adiante que todas as pessoas nascidas possuem algum conhecimento da vontade de Deus por meio de sua consciência. Mas esse conhecimento é muitas vezes indistinto e não pode comunicar certeza. De fato, se não houvesse nenhuma Palavra de Deus escrita, não poderíamos nunca adquirir certeza a respeito da vontade de Deus por outros meios, como o conselho de outros, o testemunho interno do Espírito Santo, circunstâncias mudadas e o uso do raciocínio santificado e do senso comum. Esses meios todos poderiam dar uma aproximação da vontade de Deus de modo mais ou menos confiável, mas somente por intermédio deles nenhuma certeza da vontade de Deus poderia ser obtida, ao menos no mundo decaído onde o pecado distorce a nossa percepção do que é certo e do que é errado, conduz ao raciocínio errôneo em nosso processo de pensamento e suprime de vez em quando o testemunho de nossa consciência (cf. Jr 17.9; Rm 2.14,15; lCo 8.10; Hb 5.14; 10.22; v. tb. lTm 4.2; Tt 1.15).


Na Bíblia, contudo, temos afirmações claras e definidas a respeito da vontade de Deus. Deus não nos revelou todas as cosias, mas nos revelou o suficiente para sabermos sua vontade: “As coisas encobertas pertencem ao SENHOR, o nosso Deus, mas as reveladas pertencem a nós e aos nossos filhos para sempre, para que sigamos todas as palavras desta lei” (Dt 29.29). Como foi no tempo de Moisés, assim é conosco hoje: Deus nos revelou suas palavras a fim de que pudéssemos obedecer a suas leis e, desse modo, fazer sua vontade. Ser “irrepreensível” à vista de Deus é viver “conforme a lei do SENHOR” (Sl 119.1). O homem “feliz” é aquele que não segue o conselho dos ímpios (S1 1.1), mas “sua satisfação está na lei do SENHOR” (Sl 1.2). Amar a Deus (e, assim, agir de modo que o agrade) é “obedecer aos seus mandamentos” (1Jo 5.3). Se podemos ter certo conhecimento da vontade de Deus, devemos obtê-lo mediante o estudo da Escritura.


De fato, em certo sentido pode ser argumentado que a Bíblia é necessária para se obter algum conhecimento a respeito de qualquer coisa. Um filósofo poderia argumentar da seguinte maneira:

O fato de que não conhecemos tudo requer de nós que estejamos incertos a respeito de cada coisa que afirmamos conhecer. Isso é assim porque algo que desconhecemos pode ainda surgir para provar que o que pensamos ser verdadeiro é realmente falso. Contudo, Deus conhece todos os fatos que aconteceram ou acontecerão. E este Deus, que nunca mente, falou-nos na Escritura, na qual ele nos declara muitas coisas a respeito de si mesmo, de nós próprios e do universo que criou. Nenhum fato pode jamais surgir para contradizer a verdade falada por Aquele que é onisciente.
Assim, é apropriado para nós estar mais seguros a respeito das verdades que lemos na Escritura do que sobre qualquer outro conhecimento que temos. Se fôssemos falar a respeito de graus de certeza de conhecimento que temos, então o conhecimento que obtemos da Escritura teria o mais alto grau de certeza. Se a palavra certo pode ser aplicada a qualquer espécie de conhecimento humano, ela pode ser aplicada a este conhecimento. Os cristãos que sustentam a Bíblia como Palavra de Deus livram-se do ceticismo filosófico a respeito da possibilidade de obter conhecimento seguro com nossa mente finita. Nesse sentido, então, é correto dizer que, para pessoas que não são oniscientes, a Bíblia é necessária para o conhecimento seguro a respeito de tudo.

4. Mas a Bíblia não é necessária para se saber que Deus existe ou para saber algo a respeito do caráter de Deus e das leis morais.


Que dizer de pessoas que não lêem a Bíblia? Elas podem obter algum conhecimento de Deus? Elas podem conhecer certas coisas a respeito de suas leis? Sim, é possível algum conhecimento de Deus sem a Bíblia, mesmo que não seja um conhecimento seguro.

a. A revelação geral e a revelação especial. As pessoas podem obter o conhecimento de que Deus existe e de alguns de seus atributos simplesmente por observar a si mesmas e ao mundo que as rodeia. Davi diz: “Os céus declaram a glória de Deus; o firmamento proclama a obra das suas mãos” (Sl 19.1). Olhar para o céu significa ver a evidência do infinito poder, sabedoria e mesmo beleza de Deus; significa observar o testemunho majestoso da glória de Deus.

Mesmo aqueles que, por sua impiedade, suprimem a verdade, não podem evitar as evidências da existência e da natureza de Deus na ordem da criação:


Pois o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Pois desde a criação do mundo os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo compreendidos por meio das coisas criadas, de forma que tais homens são indesculpáveis; porque, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe renderam graças, mas os seus pensamentos tornaram-se fúteis e o coração insensato deles obscureceu-se Rm 1.19-21).


Aqui Paulo não diz somente que a criação dá evidência da existência e do caráter de Deus, mas também que mesmo os ímpios reconhecem essa evidência. O que pode ser conhecido a respeito de Deus “é manifesto entre eles”, e realmente eles conheceram Deus (ao que parece, eles conheceram quem ele era), mas “não o glorificaram como Deus, nem lhe renderam graças”. Essa passagem nos permite dizer que todas as pessoas, mesmo as mais ímpias, possuem algum conhecimento interno ou percepção de que Deus existe e que ele é o Criador poderoso. Esse conhecimento é visto “por meio das coisas criadas”, expressão que se refere a toda a criação, incluindo a raça humana.

Paulo continua a mostrar em Romanos 1 que mesmo os descrentes que não possuem nenhum registro escrito das leis de Deus ainda têm em suas consciências algum entendimento das exigências morais de Deus. Falando de uma longa lista de pecados (“inveja, homicídio, rivalidades, engano...”), Paulo diz dos ímpios que os praticam: “Embora conheçam o justo decreto de Deus, de que as pessoas que praticam tais coisas merecem a morte, não somente continuam a praticá-las, mas também aprovam aqueles que as praticam” (Rm 1.32). Os ímpios sabem que seus pecados são errados, ao menos em grande medida.

Paulo fala então a respeito da atividade da consciência nos gentios que não possuem a lei escrita: “De fato, quando os gentios, que não têm a Lei, praticam naturalmente o que ela ordena, tornam-se lei para si mesmos, embora não possuam a Lei; pois mostram que as exigências da Lei estão gravadas em seu coração. Disso dão testemunho também a sua consciência e os pensamentos deles, ora acusando-os, ora defendendo-os” (Rm 2.14,15).


A consciência dos descrentes testemunha dos padrões morais de Deus, mas às vezes essa evidência da lei de Deus no coração deles é distorcida ou suprimida. Às vezes seus pensamentos os acusam e às vezes seus pensamentos os defendem, diz Paulo. O conhecimento das leis de Deus derivado de tais fontes nunca é perfeito, mas é suficiente para criar a consciência das exigências morais de Deus para toda a raça humana. (E é com base nisso que Paulo argumenta que toda a humanidade é considerada culpada diante de Deus pelo pecado, mesmo os que não possuem as leis escritas de Deus na Escritura).


O conhecimento da existência, do caráter e da lei moral de Deus, que vem por meio da criação para toda a humanidade, é muitas vezes chamado “revelação geral” (porque ela vem a todas as pessoas).A revelação geral vem por meio da observação da natureza, por meio da percepção da influência direta de Deus na história e por meio do senso interior da existência de Deus e de suas leis que ele colocou dentro de cada pessoa. A revelação geral é distinta da revelação especial, que se refere às palavras de Deus dirigidas a pessoas específicas, como as palavras que estão na Bíblia, as palavras dos profetas do AT e dos apóstolos do NT, e as palavras de Deus faladas diretamente, como aquelas ditas no monte Sinai e no batismo de Jesus.


O fato de que todas as pessoas conhecem alguma coisa das leis morais de Deus é uma grande bênção para a sociedade, pois sem elas não haveria restrição social à prática do mal que as pessoas cometeriam nem refreamento vindo de suas consciências. Porque há algum conhecimento comum do certo e do errado, os cristãos podem muitas vezes estabelecer grande consenso com os não-cristãos em matéria da lei civil, padrões de comunidade, ética básica de negócios e de atividade profissional, além de padrões de conduta aceitáveis na vida cotidiana. O conhecimento da existência e do caráter de Deus também proporciona uma base de informação que capacita o evangelho a fazer sentido para o coração e a mente do não-cristão; os descrentes sabem que Deus existe e que eles quebraram os seus padrões, de modo que as novas de que Cristo morreu para pagar por seus pecados deveriam soar verdadeiramente como boas novas para eles.


b. A revelação especial é necessária para a salvação. Contudo, deve ser enfatizado que em nenhum lugar a Escritura indica que as pessoas podem conhecer o evangelho, ou o caminho da salvação, por meio da revelação geral. Elas podem saber que Deus existe, que ele as criou, que elas lhe devem obediência e que elas pecaram contra ele. Mas como a santidade e a justiça de Deus podem ser conciliadas com o seu desejo de perdoar pecados é um mistério que nunca foi resolvido por religião alguma à parte da Bíblia. Nem a Bíblia nos dá qualquer esperança de que tal mistério possa ser desvendado independentemente da revelação específica de Deus. É uma grande maravilha de nossa redenção que o próprio Deus tenha providenciado o caminho de salvação por enviar o próprio Filho, que é tanto Deus como homem, para ser o nosso representante e suportar a penalidade de nossos pecados, combinando dessa forma a justiça e o amor de Deus de modo infinitamente sábio e por meio de um ato maravilhosamente gracioso. Esse fato, que parece lugar-comum aos ouvidos do cristão, não deveria perder o seu encanto para nós: ele nunca poderia ter sido concebido somente pelo homem independentemente da revelação verbal e especial de Deus.


Autor: Wayne Grudem
Fonte: Teologia Sistemática do Autor, Ed. Vida Nova. Compre este livro em http://www.vidanova.com.br .

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