A mulher samaritana, Coca-Cola e Jesus
Por Ricardo Gondim Rodrigues
Às
vezes, a gente ouve certas coisas que não aceita, mas não sabe bem o
porquê. Só depois de algum tempo entende. Não foi por mera antipatia que
aquela mensagem não desceu bem. Recordo-me quando ouvi pela primeira
vez o paralelo entre Jesus e a Coca-Cola. O pregador, inflamado de zelo e
paixão missionária, afirmava que numa viagem ao interior do Haiti, sob
uma temperatura de mais de 40 graus, sentiu-se
aliviado quando parou num quiosque miserável feito de palha de coqueiros
e pôde comprar uma garrafa do mais famoso refrigerante do mundo.
Devidamente refeito depois de beber sua Coca geladinha, perguntou ao
dono da venda se já ouvira falar de Jesus. Ele não sabia de quem se
tratava. E o nosso palestrante fez sua analogia, tentando dar um choque
na complacência da igreja ocidental: “A Coca-Cola conseguiu alcançar o
mundo inteiro em menos de um século e a igreja cristã ainda não cumpriu a
ordem da Grande Comissão em mais de 20 séculos!”. Depois daquela
primeira exortação, já devo ter escutado essa mesma comparação uma dúzia
de vezes em diversas conferências missionárias. Verdade ou tolice?
Pior. Estou certo que essas ilustrações não são meros simplismos, nascem
de grandes erros teológicos (ou ideológicos?).
Coca-Cola
é uma bebida inventada na Geórgia, Estados Unidos, com uma fórmula
secreta. Sabe-se que sua receita original continha alguns ingredientes
também encontrados na cocaína, daí o seu nome. Seus fabricantes nunca
intencionaram outro propósito senão matar a sede das pessoas. A The
Coca-Cola Company não convoca ninguém a rever valores do caráter, não
confronta estruturas de morte, não se propõe a aliviar culpa, não revela
a eternidade e nem Deus. Para chegar aos quiosques mais remotos do
globo, bastou criar um produto doce e gaseificado. Investir bilhões em
boas estratégias de propaganda, construir fábricas e desenvolver uma boa
rede de distribuição para que o produto chegasse com a mesma qualidade
nos pontos de venda. Tentar comparar a missão da igreja no anúncio do
Reino de Deus às estratégias de mercado de um refrigerante, beira o
absurdo. Confunde-se um bem material com uma pessoa e enxerga-se na
mensagem um produto. Os missiólogos sucumbiram à lógica do mercado do
novo milênio? Acreditam mesmo que cumpriremos nossa missão com os
instrumentais corporativos? Tudo pode se tornar um produto?
No
Brasil, o esforça-se muito para “vender” o Evangelho. Quase não se usa a
mídia para proclamar os conteúdos do Evangelho. Alardeiam-se os
benefícios da fé. Basta observar a enormidade de tempo gasto divulgando
os horários dos cultos, a eficácia da oração, mostrando que aquela
igreja é melhor e que a sua mensagem é a mais forte para resolver todos
os problemas das pessoas. Aborda-se o Evangelho como um produto eficaz e
adota-se uma mentalidade empresarial no seu anúncio. Prometem-se
enormes possibilidades. Tratam as pessoas como clientes e sem
constrangimento, anuncia-se que qualquer um pode adquirir esse
determinado benefício com um esforço mínimo. As igrejas se transformam
em balcões de serviços religiosos ou supermercados da fé. A tendência de
oferecer cultos diferenciados e as intermináveis campanhas de milagres
demonstram bem esse espírito. Como um supermercado com as gôndolas
recheadas de produtos, as igrejas procuram incrementar os “serviços” ao
gosto dos fregueses. Os pastores dividem os dias da semana com
programações atrativas; gastam suas energias desenvolvendo estratégias
que atraiam o maior número de pessoas. Sonham com auditórios lotados.
Campanhas, correntes e demonstrações grotescas de exorcismos e milagres
financeiros se sucedem. As pessoas, por sua vez, se achegam, seduzidos
pelas promoções das prateleiras eclesiásticas.
Esse
modelo induz as pessoas a adorarem a Deus por aquilo que ele dá e não
por quem é. Não se anuncia o senhorio de Cristo, apenas os benefícios da
fé. Os crentes acabam tratando a Bíblia como um amuleto e,
supersticiosos, continuam presos ao medo. Vive-se uma religião de
consumo.
Mas
existe outra dimensão ainda mais sutil. Naomi Klein, jornalista
canadense, publicou recentemente “Sem Logo” (Editora Record) para
denunciar a tirania das marcas em um planeta obcecado pelo consumo. Ela
defende a tese de que a grandes corporações do mercado global não vendem
apenas os seus produtos, mas a marca. Procuram criar uma filosofia de
vida embutida em seus produtos. Desejam induzir seus consumidores a
acreditarem que podem viver um determinado estilo de vida, desde que
comprem aquela marca específica. Assim os fumantes de Marlboro imaginam
personificar o “cowboy” solitário, mesmo morando em um apartamento.
Quando atletas amadores vestem as roupas ou calçam os tênis da Nike,
acham que se transformam em campeões. Gente que vive presa no trânsito
apinhado das grandes metrópoles, ao dirigir jipes com tração nas quatro
rodas, sente-se desbravando sertões. Klein declara: “’Marcas, não
produtos!’ tornou-se o grito de guerra de um renascimento do marketing
liderado por uma nova estirpe de empresas que se viam como ‘agentes de
significado’ em vez de fabricantes de produtos. Segundo o velho
paradigma, tudo o que o marketing vendia era um produto. De acordo com o
novo modelo, contudo, o produto sempre é secundário ao verdadeiro
artigo. A marca e a sua venda adquirem um componente adicional que só
pode ser descrito como espiritual”.
Infelizmente
percebe-se o mesmo em determinados círculos cristãos. Querem fazer do
Evangelho uma grife. Como? Primeiro transforma-se um seleto grupo de
evangelistas, cantores e pastores em superestrelas ao estilo de
Hollywood. Depois associam seu nome a grandes eventos e dão-lhes o
holofote. Ensinam-lhes habilidades espirituais acima da média. Assim
produzem-se ícones semelhantes aos do mundo do entretenimento. Eles
aglutinam multidões, vendem qualquer coisa e criam novas modas. A
indústria fonográfica enriquece, os congressos se enchem, e os novos
astros do mundo “gospel” alavancam suas igrejas.
Jesus
dialogou com uma mulher samaritana e ofereceu-lhe uma água viva. A
mulher imaginou essa água com raciocínios concretos. Pensou que ao
beber, nunca mais teria sede. Uma água dessas hoje, devidamente
comercializada, seria um tesouro sem preço. “Dá-me dessa água e assim
nunca mais terei que voltar aqui”. Jesus corrigiu sua linha de
pensamento. A água que ele oferecia não era mágica, mas um
relacionamento: filhos e filhas adorando ao Criador em espírito em
verdade. Infelizmente muitos evangélicos brasileiros propagandeiam água
mágica. Pretensamente matando a sede de qualquer um no estalar dos
dedos.
O
evangelho não é produto ou grife, volto a repetir, mas uma alvissareira
notícia. Não deveria se escravizar às regras do mercado. Ricardo Mariano
em sua tese de doutoramento concluiu, para a vergonha de tantas igrejas
neo-pentecostais: “As concessões mágicas feitas pelas igrejas
pentecostais às massas desafortunadas, por certo, não constituem
tão-somente meras concessões... observa-se que a oferta pentecostal de
serviços mágicos segue cada vez mais uma dinâmica empresarial, ditada
pela férrea lógica do mercado religioso, que pressiona os diferentes
concorrentes religiosos a acirrarem seu ativismo e a tornarem mais
eficazes suas ações e estratégias evangelísticas”.
Essa
mercadoria religiosa caricaturada de evangelho não representa o leito
principal da tradição apostólica. A indústria que encena essa
coreografia carismática de muito barulho e pouca eficácia, não conta com
o aval de Deus. Há de se voltar ao anúncio doloroso do arrependimento
como primeira atitude para os candidatos ao Reino. Não se pode, em nome
de templos lotados, omitir a mensagem da cruz. Precisa-se repetir sem
medo a mensagem de Jesus: “Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si
mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Marcos 8.34).
Se
não voltarmos aos fundamentos do Evangelho, teremos sempre clientes
religiosos, nunca seguidores de Cristo. Faremos proselitismo sem
evangelizar. Aumentaremos nossa arrecadação sem denunciar pecados.
Construiremos instituições humanas sem encarnação do Reino de Deus. E
pior, continuaremos confundimos Jesus com Coca-Cola. No Maranhão há um
refrigerante de grande sucesso com a marca Jesus. Entretanto, não se
pode desejar alcançar o sucesso transformando Jesus numa soda e as
igrejas em quiosques religiosos.
Que Deus tenha piedade de nós.
Soli Deo Gloria.
Pr. Ricardo Gondim
www.ricardogondim.com.br
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